terça-feira, 17 de agosto de 2010

Haverá algo mais belo?


Já passa das 21 horas. No final de um dia de trabalho no campo percorro a pé o caminho em direcção a casa. Vai anoitecendo tranquilamente, começa a ficar escuro, o sol já se pôs e os tons vermelhos e alaranjados do horizonte vão desaparecendo. A terra está cansada depois de mais um dia de calor, mais um em milhões de anos, as plantas respiram de alívio pois já não está tão quente, mas continua a faltar-lhes a água que tanto precisam. Noto que os grilos cantam, como é tão característico de uma noite de Verão, e como estou tão habituado, às vezes nem dou o devido valor a este pormenor (como tudo na vida).
Olho melhor para o horizonte. Uma faixa de nuvens separa duas cores diferentes: por baixo, o alaranjado que adivinha o pouco tempo que o sol se pôs, por cima azul habitual do céu, que já não tem a vivacidade do dia. Esta faixa cria um efeito bonito, retira as descontinuidades habituais das cores do céu, e parece que divide o mundo em trevas e luz, criando uma fronteira bem definida.

Páro, e fico um pouco a admirar, a sentir o momento, sorrio, e lembro-me daquilo que muitas vezes nos esquecemos: as coisas verdadeiramente Belas são aquelas que estão ao nosso alcance no dia-a-dia.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Não sei se é realidade, ou se simplesmente ela existe


Cada vez que tento olhar tudo o que me rodeia, tudo o que sou, tudo o que o mundo é e não é, mais percebo como tudo é relativo, e como as fronteiras são ténues: que o mundo não é feito de brancos e pretos, nítidos, fáceis de perceber, como por vezes os filmes e livros nos fazem transparecer. É sim de cinzentos de diversas tonalidades, sendo que uma coisa que é cinzento-claro, pode tornar-se escuro (e vice-versa) dependendo do tempo que passa, ou simplesmente do local onde se encontrar e da forma como olham para ela. Compreendo agora a necessidade de edificar e descobrir leis da natureza e do Homem, de criar valores absolutos, porque mundo é relativo e algo que parece fortíssimo, construído sobre pilares sólidos, vem-se a descobrir que é frágil, e que no fundo é tal como um baralho de cartas: basta uma brisa mais forte para se desmoronar. Perceber que basta um pequeno pormenor para aos olhos dos outros passar do 8 ao 80, ou de bestial a besta. Talvez a única coisa absoluta no fundo seja a relatividade, assim como talvez o único destino seja não haver destino, ou que a única verdade seja não haver Verdade. Percebo que entro numa maré de paradoxos, que paradoxalmente são os que têm mais sentido, ou melhor, que têm menos falta de lógica, onde as conclusões são inexistentes e quase impossíveis de extrair, e enquanto penso lembro-me daquela frase "o Homem pensa, Deus ri". Ou como se dizia num filme "a loucura é como a gravidade: às vezes basta só um empurrãozinho", mas como diz Mário de Sá Carneiro "em terra de doidos, quem tem juízo é doido", e voltamos à relatividade de tudo, relatividade essa que já é lei. Tudo é uma coisa só, pois existem ligações entre áreas aparentemente distantes: esta lei física de Einstein, apesar de partir de premissas diferentes, acaba por chagar a uma conclusão que tem como pano de fundo algo que esta implícito nas nossas relações com os outros, e também connosco mesmos, quer nas expectativas, quer nas ideias que possuímos. E parece que o mais o mais idílico e puro se situa numa terra distante, que por se situar nosso coração parece que está próxima, quase possível de se tocar, e no entanto o véu que impede que se lhe toque é tão suave, e ao mesmo tempo tão difícil de romper. E quanto mais se pensa mais difícil parece, sendo que mesmo isto é relativo.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

O que eu escrevo nunca foi Ricardo Reis, Lídia




Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

Ricardo Reis

(~Simplesmente Sublime~)