sábado, 30 de abril de 2011

Reminescências


Quando se é jovem, parece quase impossível acreditar que um dia iremos ter dificuldades em fazer coisas tão simples como andar. Era isso que José sentia agora na pele. Era uma enorme dificuldade subir aqueles míseros 3 degraus da entrada da casa, ora eram os joelhos que vacilavam, ora as pernas tinham uma inércia enorme... Realmente o nosso corpo é lixo, por isso estabelecer as nossas relações com os outros baseando-nos maioritariamente nele é um erro, mas não interessa, somos fracos, e se o essencial é invisível aos olhos, nem sempre conseguimos aplicar esta máxima.

Mas não era isso que atormentava hoje José. Sabia que em breve seria Sombra, Nada, Não-existência. Não queria pensar nisso, pois entrava em pânico.

Hoje não tinha que fazer um esforço para não pensar na morte. Hoje, involuntariamente, o seu pensamento ocupava-se de outra coisa. Tinha sonhado com Ela. Não com a morte, mas sim com aquela rapariga que ia no seu autocarro para a escola. Lembrava-se perfeitamente da sua face, da forma como andava, da forma como ela ia a olhar pela janela no autocarro, imersa nos seus pensamentos, com um sorriso natural nos lábios. Lembra-se de naquela altura ter pensado que se os Anjos existiam, deviam ser parecidos com Ela.

A paragem ainda se situava a cerca de 200 metros da escola. Então José deixava-a sair sempre primeiro do autocarro, e ia sempre atrás. No Inverno sorria quando a via ir bastante agasalhada, cheia de frio, com as pequenas gotículas do vapor de água da respiração a condensarem-se rapidamente. No Verão, sorria quando admirava a sua postura descontraída, a forma como ao de leve puxava uma madeixa de cabelo para detrás da orelha, a maneira como os braços finos e suaves se mexiam quando andava.

Queria-lhe dar uma flor. Um dos seus vizinhos tinha no jardim rosas de todas as cores: brancas, amarelas, cor-se-rosa e, claro, vermelhas. Não sabia qual iria escolher. Então pensou perguntar à sua avó, já que se sentia mais à vontade com ela para estas questões. Lembrava-se perfeitamente do que a avó lhe tinha dito: "Independentemente daquilo que escolhas, o mais importante é que sejas sincero, que lhe dês a rosa, como se lhe desses o teu coração. No meu tempo, houve um rapaz que me tinha comprado uma flor de propósito, e o teu avô deu-me uma simples flor que nascia em qualquer lado, no campo. A diferença está, acima de tudo, naquilo que ela vir nos teus olhos quando lha ofereceres."

Tinha ido para casa a reflectir bastante no que a avó lhe tinha dito. Já saberia o que ia fazer: não escolheria nenhuma cor, no momento em que a colhesse o seu coração escolheria por si.

Há uns dias, Ela tinha deixado cair o seu gancho do cabelo enquanto andava, aquele em forma de borboleta. José agarrou-o e foi-lhe entregar. Tocou levemente nos seus dedos, macios como seda. Ela tinha agradecido, "Obrigado", e sorriu. Ficaram uns segundos a olhar um para o outro, em Silêncio. A campainha da escola tocou. José não tinha dito nada, sentia-se paralisado, e não percebia muito bem porque é que Ela tinha este efeito nele.

Seria hoje. Pela primeira vez, tinha ficado um pouco de tempo ao espelho, normalmente não ligava nada a olhar-se ao espelho e sua mãe é que o penteava. Hoje tinha-se penteado, a pensar se Ela gostaria do cabelo mais puxado para o lado ou não. Mal chegou ao jardim, soube logo qual seria a rosa que iria apanhar. Destacava-se uma rosa de um vermelho vivo, nem muito aberta nem muito fechada, com uma pequena gota de orvalho nas pétalas. Por momentos teve pena da rosa, iria morrer por ser colhida. No fundo, a Beleza é assim, se a prendermos ela morre.

Mas Ela não tinha vindo. Em tantos dias, como é que pode não ter vindo precisamente no dia em que lhe iria oferecer a rosa? Nunca mais teve coragem para voltar a trazer a rosa. Lembra-se que, numa tentativa de não a deixar morrer, enterrou-a perto da paragem. A rosa morreu, mas no ano a seguir uma roseira tinha rebentado.

José voltou a si, e olhou para aquilo que era agora sentindo todo o peso do passado. Olhar para o passado tem a parte boa de poder recordar os momentos de felicidade inconsciente, e a parte má de fazer sentir que a realidade actual é triste. É como olhar para uma árvore seca e imaginar todas as folhas que já teve, pensar nas flores que terá dado na Primavera, em todos os pássaros que terão lá feito ninhos, em todos os meninos que deverão ter oferecido flores debaixo delas. Por momentos, tinha voltado a ser uma criança inocente. No fundo, foi melhor assim. E José não pensava assim porque o mais certo seria Ela nem querer aceitar a rosa, o seu coração dizia-lhe que Ela ia gostar. Mas, e depois, se acabasse a magia de um dia para o outro? Se descobrisse que afinal não gostava assim tanto dela? Ou mesmo se agora estivessem os dois juntos, sentados num banco de jardim, agora, idosos, ele voltar-lhe-ia a dar uma rosa e lembrar-se-ia de quando eram crianças e então perceberia que o tempo passa, e não deixa nada. Todas essas dores seriam piores que a dor de não lhe ter dado a rosa. Assim, poderia imaginá-la sempre jovem, a sua memória seria sempre idílica. Poderia imaginar que seriam tudo, doces crianças inocentes vítimas do destino, e no fundo, não foram nada, foram um Silêncio quando lhe apanhou o gancho.

José olhava para o que era agora, sentia-se fraco, doía-lhe o corpo todo. Mal sabia que este era o último minuto em que os seus pulmões sentiriam ar, em que as suas mitocôndrias fariam a respiração, o último minuto em que as moléculas, formadas por átomos, formados por electrões, protões e neutrões, formados por quarks, e não saberemos se haverá algo mais para além disto, formariam um ser que tem consciência de si, um ser que se chama José e que nunca deu uma rosa a uma rapariga que lhe sorriu uma vez.

José sentia-se tranquilo. Sentia uma paz que nunca tinha experimentado. Não sentia o corpo, parece que estava a flutuar. De repente era outra vez uma criança, ia no autocarro, sentado ao lado dela. Chegaram à paragem, saíram os dois, e foram de mãos dadas para a escola. Ela deu-lhe a mão como se tivesse sido algo de natural, assim como uma folha que cai descansa na terra húmida. “Talvez o céu seja o sítio em que vivemos aquilo que devia ter acontecido, talvez o céu seja o sítio onde a felicidade é inocente e nos sorri”, pensou José.

Acordou. Afinal só tinha adormecido. Nunca tinha perguntado o nome a Ela. Nem sequer isso fez. Mas agora o seu coração sabia o nome dela, e talvez tenha sabido sempre, José é que só deu ouvidos completamente ao seu coração quando escolheu uma rosa. Agora sabia, “Ela chamava-se Rosa”.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Eli, eli, lamá sabactani


O tempo estava um pouco quente para esta altura do ano. Já vinha a andar há bastantes horas e os pés já começavam a ficar em sangue, mas nada disso o preocupava, tinham-lhe roubado as sandálias um dia de noite e não tinha dinheiro para comprar outras. Ia passando a mão ao de leve pelas espigas de trigo enquanto andava, este ano iria ser produtivo, e as pessoas agradeceriam a Deus por um ano de fartura, certamente sacrificariam mais cordeiros, pombas e coisas afins. Nunca tinha percebido muito bem a lógica dos sacrifícios: para ele Deus não era algo que se exigia que se derramasse sangue em Seu nome, mas sim Aquilo que está dentro de cada um de nós, em cada lágrima de alegria e em cada lágrima de tristeza, em cada momento de silêncio e em cada momento de agitação.
Sabia que no fundo não compreendia Deus, nem sequer sabia se acreditava verdadeiramente nele. Tinha bastantes dúvidas, e não sabia se tinha alguma vez sentido Deus realmente. Não percebia como era mais fácil para as pessoas ver-se Deus num pôr-do-sol do que num daqueles pastores que viajam de terra em terra, com as suas ovelhas, seu sustento e sua companhia. Via Deus quando olhava o pastor e o via cuidar duma ovelha doente, sabia que não o fazia porque estava ali algo que lhe daria sustento, mas porque se encontrava ali um ser que sofria, e que merecia toda a dignidade e respeito. Via Deus quando olhava os olhos do pastor e via o carinho, o brilho, via que todos os sonhos do Mundo podiam estar agora naquele homem.

Finalmente estava quase a chegar. Havia uma pequena subia íngreme e depois la estava: o monte Gólgota. Queria ver aquele homem, dito Jesus, o Nazareno. Já o tinha encontrado uma vez, quando ele andava leproso. Nessa altura Jesus disse que o curava, no entanto ele recusou, disse que precisava de acreditar sem ter provas, precisava de ter fé sem que lho tivessem demonstrado. Saberia que iria morrer e poderia parecer o mais ingrato dos homens, mas achava que não devia a creditar em Jesus porque o tinha curado, queria acreditar Nele. Jesus assentiu, não o curou. No entanto quando acordou no outro dia a doença tinha desaparecido, e sabia que tinha sido Ele.

Tinha chegado a tempo. Jesus ainda se encontrava vivo, na cruz. Queria-se ajoelhar diante dele, e chorar por todos os momentos que tinha passado, porque tinha encontrado a sua terra prometida. Achava curioso o modo como as pessoas o tinha encarado: passavam anos à procura de um Messias, e quando Ele aparece não acreditam. No fundo todos os homens são assim: passam a vida a entreter-se e quando surge a oportunidade de irei além da sua vida vulgar, de mudar o mundo, de encontrar o amor, de descansar em Deus, não acreditam, fogem, desistem.

Chegou-se o mais perto possível. Alguém tinha saído há pouco com um balde com vinagre e água. Havia uma placa que dizia: "Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus". De cada lado Dele estavam a ser crucificados mais duas pessoas. Jesus, no meio de tanto sofrimento, exclamou "Meus Deus, Meu Deus, porque Me abandonaste?". Não sabia se era um devaneio, ou se o próprio Filho de Deus estava agora com dúvidas de tudo. Olhando para Ele na cruz, pensou que no fundo funcionava como aqueles animais que eram sacrificados: Ele era o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do Mundo.

De repente parou, admirado. Jesus, nos seus últimos momentos de vida, olhava para ele. Reconhecia-o. Caiu no chão e chorou. Jesus tinha expirado pela última vez. Não precisava de saber que Ele iria ressuscitar. Acreditava.