
Quando se é jovem, parece quase impossível acreditar que um dia iremos ter dificuldades em fazer coisas tão simples como andar. Era isso que José sentia agora na pele. Era uma enorme dificuldade subir aqueles míseros 3 degraus da entrada da casa, ora eram os joelhos que vacilavam, ora as pernas tinham uma inércia enorme... Realmente o nosso corpo é lixo, por isso estabelecer as nossas relações com os outros baseando-nos maioritariamente nele é um erro, mas não interessa, somos fracos, e se o essencial é invisível aos olhos, nem sempre conseguimos aplicar esta máxima.
Mas não era isso que atormentava hoje José. Sabia que em breve seria Sombra, Nada, Não-existência. Não queria pensar nisso, pois entrava em pânico.
Hoje não tinha que fazer um esforço para não pensar na morte. Hoje, involuntariamente, o seu pensamento ocupava-se de outra coisa. Tinha sonhado com Ela. Não com a morte, mas sim com aquela rapariga que ia no seu autocarro para a escola. Lembrava-se perfeitamente da sua face, da forma como andava, da forma como ela ia a olhar pela janela no autocarro, imersa nos seus pensamentos, com um sorriso natural nos lábios. Lembra-se de naquela altura ter pensado que se os Anjos existiam, deviam ser parecidos com Ela.
A paragem ainda se situava a cerca de 200 metros da escola. Então José deixava-a sair sempre primeiro do autocarro, e ia sempre atrás. No Inverno sorria quando a via ir bastante agasalhada, cheia de frio, com as pequenas gotículas do vapor de água da respiração a condensarem-se rapidamente. No Verão, sorria quando admirava a sua postura descontraída, a forma como ao de leve puxava uma madeixa de cabelo para detrás da orelha, a maneira como os braços finos e suaves se mexiam quando andava.
Queria-lhe dar uma flor. Um dos seus vizinhos tinha no jardim rosas de todas as cores: brancas, amarelas, cor-se-rosa e, claro, vermelhas. Não sabia qual iria escolher. Então pensou perguntar à sua avó, já que se sentia mais à vontade com ela para estas questões. Lembrava-se perfeitamente do que a avó lhe tinha dito: "Independentemente daquilo que escolhas, o mais importante é que sejas sincero, que lhe dês a rosa, como se lhe desses o teu coração. No meu tempo, houve um rapaz que me tinha comprado uma flor de propósito, e o teu avô deu-me uma simples flor que nascia em qualquer lado, no campo. A diferença está, acima de tudo, naquilo que ela vir nos teus olhos quando lha ofereceres."
Tinha ido para casa a reflectir bastante no que a avó lhe tinha dito. Já saberia o que ia fazer: não escolheria nenhuma cor, no momento em que a colhesse o seu coração escolheria por si.
Há uns dias, Ela tinha deixado cair o seu gancho do cabelo enquanto andava, aquele em forma de borboleta. José agarrou-o e foi-lhe entregar. Tocou levemente nos seus dedos, macios como seda. Ela tinha agradecido, "Obrigado", e sorriu. Ficaram uns segundos a olhar um para o outro, em Silêncio. A campainha da escola tocou. José não tinha dito nada, sentia-se paralisado, e não percebia muito bem porque é que Ela tinha este efeito nele.
Seria hoje. Pela primeira vez, tinha ficado um pouco de tempo ao espelho, normalmente não ligava nada a olhar-se ao espelho e sua mãe é que o penteava. Hoje tinha-se penteado, a pensar se Ela gostaria do cabelo mais puxado para o lado ou não. Mal chegou ao jardim, soube logo qual seria a rosa que iria apanhar. Destacava-se uma rosa de um vermelho vivo, nem muito aberta nem muito fechada, com uma pequena gota de orvalho nas pétalas. Por momentos teve pena da rosa, iria morrer por ser colhida. No fundo, a Beleza é assim, se a prendermos ela morre.
Mas Ela não tinha vindo. Em tantos dias, como é que pode não ter vindo precisamente no dia em que lhe iria oferecer a rosa? Nunca mais teve coragem para voltar a trazer a rosa. Lembra-se que, numa tentativa de não a deixar morrer, enterrou-a perto da paragem. A rosa morreu, mas no ano a seguir uma roseira tinha rebentado.
José voltou a si, e olhou para aquilo que era agora sentindo todo o peso do passado. Olhar para o passado tem a parte boa de poder recordar os momentos de felicidade inconsciente, e a parte má de fazer sentir que a realidade actual é triste. É como olhar para uma árvore seca e imaginar todas as folhas que já teve, pensar nas flores que terá dado na Primavera, em todos os pássaros que terão lá feito ninhos, em todos os meninos que deverão ter oferecido flores debaixo delas. Por momentos, tinha voltado a ser uma criança inocente. No fundo, foi melhor assim. E José não pensava assim porque o mais certo seria Ela nem querer aceitar a rosa, o seu coração dizia-lhe que Ela ia gostar. Mas, e depois, se acabasse a magia de um dia para o outro? Se descobrisse que afinal não gostava assim tanto dela? Ou mesmo se agora estivessem os dois juntos, sentados num banco de jardim, agora, idosos, ele voltar-lhe-ia a dar uma rosa e lembrar-se-ia de quando eram crianças e então perceberia que o tempo passa, e não deixa nada. Todas essas dores seriam piores que a dor de não lhe ter dado a rosa. Assim, poderia imaginá-la sempre jovem, a sua memória seria sempre idílica. Poderia imaginar que seriam tudo, doces crianças inocentes vítimas do destino, e no fundo, não foram nada, foram um Silêncio quando lhe apanhou o gancho.
José olhava para o que era agora, sentia-se fraco, doía-lhe o corpo todo. Mal sabia que este era o último minuto em que os seus pulmões sentiriam ar, em que as suas mitocôndrias fariam a respiração, o último minuto em que as moléculas, formadas por átomos, formados por electrões, protões e neutrões, formados por quarks, e não saberemos se haverá algo mais para além disto, formariam um ser que tem consciência de si, um ser que se chama José e que nunca deu uma rosa a uma rapariga que lhe sorriu uma vez.
José sentia-se tranquilo. Sentia uma paz que nunca tinha experimentado. Não sentia o corpo, parece que estava a flutuar. De repente era outra vez uma criança, ia no autocarro, sentado ao lado dela. Chegaram à paragem, saíram os dois, e foram de mãos dadas para a escola. Ela deu-lhe a mão como se tivesse sido algo de natural, assim como uma folha que cai descansa na terra húmida. “Talvez o céu seja o sítio em que vivemos aquilo que devia ter acontecido, talvez o céu seja o sítio onde a felicidade é inocente e nos sorri”, pensou José.
Acordou. Afinal só tinha adormecido. Nunca tinha perguntado o nome a Ela. Nem sequer isso fez. Mas agora o seu coração sabia o nome dela, e talvez tenha sabido sempre, José é que só deu ouvidos completamente ao seu coração quando escolheu uma rosa. Agora sabia, “Ela chamava-se Rosa”.